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sábado, 27 de março de 2010

Boa noite, Caio.

Pronta para dormir. Uma dorzinha de cabeça chata me incomoda, mesmo já tendo jantado.
Porta do quarto fechada. Duas voltas e a chave retinha, como sempre. Um cansaço. Luz apagada.A TV ligada. Som baixinho. Sleep pronto para os 60 minutos de todo dia.


Olho para a escrivaninha. Lá está o livro do Caio. De repente, num movimento nada premeditado, como se meu corpo agisse mais rápido que meu cérebro, lá estava eu deitada, com o livro ao meu lado.
Veio o impulso de ler. Há muito não lia antes de dormir. Na verdade, há muito deixei de ler. No máximo um texto ou outro ou, ainda, apenas as primeiras páginas de algum dos muitos livros comprados e não lidos, que me aguardam na estante ou na bolsa, durante a viagem de metrô, nos raros momentos em que consigo me sentar ou, então, em que não estou com dor de cabeça.


Sim, impulso. Não era vontade, pois o cansaço não dava brecha a este sentimento. Também não era falta de sono. Foi mais uma necessidade. E a luz continuava apagada, a cabeça pesando mais (cansada de tantos medicamentos, resolvi não tomar mais um ). Folheei o livro. Decidi ler a seleção de cartas. As que tinha escrito à mãe.
Deitada, apenas com a parca luminosidade da TV que exibia o início do ZOOM, comecei a leitura...

Sampa 7.2.79

Querida mãe,
estou aproveitando a ida do Augusto para mandar esta carta, escrita na redação mesmo, a senhora sabe, aquelas corridas de sempre. Ando sentindo falta de notícias daí...
(...)
Aqui tá tudo bem – hoje tá um dia de sol lindo, nem parece São Paulo. Acordei às 7 e meia da manhã com a dona Francisca chegando...
(...)
Estou sozinho em casa (hoje chega o Luiz Arthur, que vai ficar uns dias aqui) – Rofran foi fazer um filme em Pirapora, no interior de Minas Gerais, e eu estou até um pouco preocupado, porque Minas inteira está debaixo d’água, e Pirapora é uma das cidades mais atingidas. Ele ficou de telefonar e não telefonou, acho que a equipe de filmagem deve estar ilhada lá.


Fiquei muito contente com a aprovação das gurias no vestibular. Vai ser ótimo para elas, só espero que a Cláudia aguente aqueles demônios do curso de Letras, como a Rebeca ou o Bunse, professor de Linguística.
Interrompi, tivemos uma reunião, agora já é de tarde. Tá uma bagunça isso aqui. Saíram algumas pessoas da revista, acumulou trabalho, ficou meio baixo-astral. Durante a reunião tive uma discussão meio forte com a patroa. Ando meio ofendido com certas coisas – como o diretor marcar uma reunião às 9 da manhã, eu e outros chegamos antes das 9, e ele só pinta às 10 e meia, muito apressado, falando que a revista tá péssima, coisas assim. Falou que tínhamos que reduzir os textos, aumentar as fotos e o visual, que o “leitor não gosta de ler”. Eu disse que tinha irmãs adolescentes que adoravam ler, e que achava que a gente não devia colaborar com a alienação. Ele me chamou de obsoleto, eu fiquei puto e repliquei que minha formação foi feita antes de 64, e que se ele achava que cultura e leitura eram coisas obsoletas então íamos muito mal – e que se ele tava a fim de colaborar com o processo de castração mental da juventude brasileira pós-64, eu não estava. Por aí foi. Numa certa altura, até a senhora acabou entrando na briga. Ele disse que meus títulos pareciam livro antigo de História. Eu falei “minha mãe é professora de História, eu estudei muita História e se a juventude de hoje não sabe nem quem foi Getúlio Vargas é porque não se estuda mais História”. Voou pena. Suei, gritei. Todo mundo quieto em volta. Aí resolvi calar a boca. Afinal, como na fábula do lobo e do cordeiro: contra a força não há argumentos.



Mas ando de saco muito cheio com essas coisas. De repente tô trabalhando num lugar que me obriga a ir contra tudo o que penso e sinto. Não sei como resolver tudo isso. Mas tudo bem, to calmo e ponderado, embora a vontade seja de agredir todo mundo, dizer meia dúzia de verdades e sair pisando duro. Não vou fazer nenhuma loucura.
(...)
Caio
(ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: o essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 331, 332)

Engraçado como sempre sou surpreendida pelo Caio.
Meu primeiro encontro foi no 3º ano da faculdade de Letras (ano 2000), durante uma aula de Literatura Brasileira com o professor João Luís Ceccantini. Ele nos deu o conto “Além do ponto”, para que o lêssemos e escrevêssemos nossas impressões. Tinha que ser entregue no final da aula. Não era uma análise. Era algo simples, explicou.
Impossível. Aquele conto não tinha nada de simples. E fiquei paralisada.
Não entreguei a tarefa ao final da aula. Não entreguei a tarefa no período da tarde. Não entreguei a tarefa no dia seguinte.
Cheguei ao ponto em que não conseguia passar daquele ponto, por mais que tentasse.
Ainda hoje, não tenho como explicar o que aconteceu. Foram duas semanas pensando, chorando, com um nó na garganta. Nada passava. A única coisa em que pensava era no conto. E quanto mais pensava, menos conseguia fazer.
Aquela chuva, aquela desolação, aquele querer acreditar...
Cheguei ao ponto estático: não podia voltar, não podia seguir adiante.
Apenas semanas depois entreguei meu trabalho.
Esse encontro foi marcante.
Foi o encontro com o Caio, o encontro comigo mesma, o encontro com o verdadeiro contexto em que me encontrava.
Daquele dia em diante, sempre sou surpreendida por Caio. Seja num conto, num texto, numa carta.
E assim foi esta noite.


Um sorriso me escapou, ao ver a coincidência nas mães professoras de História.
Não, não é uma situação incomum. Nada de extraordinário para a maior parte das pessoas. (Bem-vinda ao mundo real, dizem os “experientes”.) O problema é que não é normal para mim. E não quero, jamais, achar que esta situação é trivial e que deva ser ignorada por ser inevitável. Não, não sou ingênua. Não vou mudar as pessoas, muito menos o mundo. Mas não dá para encarar uma situação dessas de forma a tornar-me conivente ou, ainda, de forma a aceitar e até mesmo internalizar esta ideia.
Mais uma vez agradeço ao Caio. Minha cabeça parou de doer. Com relação a este assunto, assim como ele, “Não sei como resolver tudo isso”, mas estou serena agora. E pronta para dormir.


“Não vou fazer nenhuma loucura”.

2 comentários:

Cris disse...

Uaw!! Muito bom o texto... gostei mesmo!!
Consigo ver claramente "você" impressa no texto :)
Escreve mais!!

Janaina disse...

Que TALENTO!!! E você sabe que é de coração! Sabe perfeitamente que eu falo com você sem meias palavras...rsrsrsrs...
Mistura de realidade com ficção.
ESCREVE MAIS!!!

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