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quarta-feira, 20 de abril de 2011

Os ambulantes, o abrigo de vidro e eu.

Quando deixamos a rotina e nos lançamos a algo novo nossos sentidos voltam a se aguçar.

É curioso notar como deixamos de prestar atenção nas coisas quando nossos atos se tornam costumes, hábitos mecanizados que seguem apenas a lógica do relógio.
Quando voltei a morar nessa cidade, andar de metrô era sempre uma aventura. Um turbilhão de sensações tomava conta de mim. Deleitava-me sendo apenas uma voyeur. Ficava feliz ao encontrar bebês super fofinhos nos carrinhos ou nos colos de suas mães, risadas espontâneas ao ver crianças divertindo-se de forma tão gostosa com a descoberta do metrô, as muitas informações, as conseqüências que o andar e frear do trem faziam em seus corpos, a tão esperada hora de passar por debaixo do túnel e, em algum casos, o medo ou irritação pelo barulho que levavam suas mãozinhas aos olhos ou ouvidos.
Observava as pessoas, o que liam, o que faziam, o que conversavam... imaginava como seria a vida daqueles que viajavam sozinhos e com um semblante de tristeza ou muito cansaço.
E assim minha viagem caminhava mais rápido e de maneira prazerosa. Muitas vezes escutava músicas que se tornavam a trilha sonora das histórias que ia construindo conforme os personagens que apareciam no vagão.
Depois de anos realizando o mesmo trajeto, nos mesmos horários e com o cansaço aumentando, é lamentável notar como tudo isso perdeu seu encanto...
Os “planos” também nos fazem perder essa sensibilidade. Nossa cabeça é arrebatada por uma avalanche de pensamentos sobre o trabalho, sobre as atividades a fazer, sobre as compras e as contas a pagar... e a única coisa capaz de nos acordar desse transe é o relógio. Pois é ele quem manda em nossas vidas, quem rege nossa rotina para que consigamos realizar tudo o que foi planejado.

Voltei a ter meus sentidos aguçados. Passei a ir trabalhar de carro. O trajeto não é exatamente o mesmo diariamente, pois aprendi a pegar uns “atalhos” na tentativa de escapar do trânsito em dias mais tensos... Mas algumas cenas são as mesmas, faça sol ou chuva, estando um calor escaldante ou um frio de gelar a alma, lá estão eles: os vendedores ambulantes.
Acho que criaram uma cooperativa ou alguma forma parecida de organização. São sempre os mesmos, vestindo coletes refletivos, bonés, para se protegerem do sol, e seus produtos nas mãos. Sinto como se fossem meus colegas de trabalho. Pois, todos os dias, nos vemos e nos cumprimentamos. Fico imaginando como é a vida deles, se possuem família, onde vivem, quanto ganham (se é possível viver dignamente com esse trabalho), se gostam do que fazem, se têm sonhos, se são felizes.
Eles, à mercê do tempo, eu, no conforto do meu carro. Escutando a programação da Rádio Cultura, Debussy, Mozart, Vivaldi, Bach, Villa Lobos e tantos outros, tornam-se a trilha sonora deste capítulo diário que me faz parar de pensar em mim para pensar no outro. Pensando no outro, me pego pensando em como sou responsável pela condição desse outro e o que posso fazer para amenizar as diferenças.
Depois, também penso o quão arrogante sou. Afinal, somos iguais, o ambulante e eu.
Um amigo, da época de faculdade, hoje psicólogo, uma vez questionou sobre o processo de caridade. Disse ele, se a memória não me trair, que nossa visão era errada, pois sempre partimos do princípio de que o outro só estará bem e feliz se tiver o mesmo estilo de vida que o nosso, algo muito próximo disso ou, ainda, se dermos as condições (de maneira dada, não ensinada) para que possam alcançar o que temos. Ou seja, geralmente, para a maioria das pessoas que realizam “caridade” o outro é infeliz porque não possui uma casa, um quarto bem decorado, conforto e bens materiais que o caracterizem como um consumidor pertencente à certa classe social.
Fiquei chocada ao ouví-lo. Quis argumentar (e argumentei), ficamos cada um com o seu ponto de vista. Anos depois, entendi o que ele quis dizer e passei a concordar com sua visão.
A “caridade” que fazemos é sempre material. Não é preciso ser hipócrita, dinheiro é vital para a compra de mantimentos e bens de consumo necessários à vida em sociedade (roupas, calçados, etc.), todos precisam comer e ter direito a viver com o mínimo de dignidade. No entanto, o que fazemos, na verdade, é olhar essas pessoas como “coitadas” por não terem aquilo que “nós” temos. Mas, será mesmo que o outro precisa ter uma roupa de marca? Um tênis Nike? Ou precisa saber sobre a sua história, origem e os rumos que pode tomar para se tornar um verdadeiro cidadão? Capaz de ter seus próprios desejos e discernimento para escolher aquilo que melhor lhe convier? Capaz de saber que uma calça da Diesel não traz felicidade, que “andar na moda” não lhe garante amigos verdadeiros, diálogos que te façam refletir e ações que te façam ver e sentir o que o dinheiro não compra, mas cujos benefícios para a sua formação “humana” são incalculáveis?
Assim, criamos uma legião que acredita ser obrigação daqueles que possuem um melhor “status social” ajudar, de mão beijada, os “menos favorecidos” a conquistar, também, os bens de consumo por eles desejados, mesmo que esse desejo não seja fiel à sua própria vontade e, sim, resultado das artimanhas publicitárias que fazem com que o consumidor tenha a ilusão de consciência de seus desejos de compra, quando, na realidade, não passa de um joguete nas mãos do mercado.
Os que ajudam sentem “um vazio” ou um sentimento de culpa que, a fim de ser amenizado, os levam a doar os bens que lhes sobram. Entretanto, o “condicionamento em adquirir em detrimento do pensar” é tão poderoso em nossa sociedade, que poucos se dão conta que o vazio continuará lá, pois não é essa a maneira correta de preenchê-lo.
Penso em tudo isso enquanto estou no carro e considero que o melhor a fazer é sempre agir para que a educação e o acesso à informação sejam realidade a todos. Penso na função social de minha profissão e nas ações que posso desenvolver para ajudar a tornar esse ideal em realidade.

Alguém aparece ao lado de minha janela...
É incrível encontrar um sorriso espontâneo no rosto de um trabalhador desses. Ele passa, sorri, oferece seu produto e lhe agradece de maneira alegre, desejando um “bom dia” (independente se a venda foi realizada ou não). Espanto-me. Em meu mundinho pequeno, fico admirada em ver que as dificuldades da vida não são capazes de elidir o sorriso e a esperança do rosto dessas pessoas. Em meu mundinho, descobri que tudo está errado. Nesta semana, o abrigo que construí durante 31 anos de existência simplesmente desabou. De material frágil e lacerante desfez-se sobre mim. Feridas abertas e a certeza de que não existem certezas. A certeza de saber que tudo o que fiz, pensando ser o melhor, não passou de erros, enganos e distorções que me fizeram criar uma linha de raciocínio, um comportamento, um mundo e a ilusão de que tudo nele funcionava. Agora, que a verdade bateu em minha face, enxergo que era uma vida de faz de conta na qual interpretava uma personagem. Uma enferma personagem que não vislumbrava sua própria condição.

O dia que começa é sempre uma incerteza: Fará sol? Tempo nublado? Chuva? Forte ou fraca? Passarei frio? Calor? Conseguirei vender? Conseguirei pagar meu aluguel? Comprar comida?
Assim como é incerto o trabalho e a vida desses ambulantes que, mesmo quando tudo parece atuar de forma contrária, não economizam no otimismo, na boa educação, na esperança e na gentileza, é incerto meu caminho, agora. Aprender que não existem certezas, verdades absolutas. Aprender a sempre questionar, a sempre pensar em todos os lados existentes e saber que o que se é hoje, pode-se não ser amanhã e que isso não é errado. Aprender a não ser fixa, a não ser rígida.

Aprender que a incerteza não é negativa. Aprender a caminhar nessa nova escola para poder costurar as feridas que os cacos de vidro me causaram. Aprender que é preciso tempo para que elas cicatrizem. Aprender que as marcas nos servem de lição. Aprender que sempre é possível aprender. Aprender que também é possível sorrir em dias de chuva.

1 comentários:

Pedro Crespo disse...

Adorei o texto! Parabéns!

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